Alguns dias atrás recebi uma ligação do posto de saúde do meu bairro. O sujeito do outro lado da linha me informou que a minha consulta com o médico oftalmologista havia sido liberada.
Fiquei surpreso. Afinal, foram mais de oito meses de espera. Mas tudo bem. A gente conhece bem esse cenário de serviços públicos. Pelo menos, a consulta iria acontecer.
Quem usa serviços públicos, especialmente os de saúde, sabe que conseguir um atendimento é quase, ou como, ganhar na loteria. Talvez, seja ainda melhor.
Confirmado alguns dados pessoais, o atendente da UBS então diz que eu precisaria comparecer ao local para retirar uma guia de autorização. Eu estava em horário de trabalho e precisaria, portanto, dar uma ‘escapadinha’ para ir ao posto.
Vale lembrar que o atendente havia me alertado, ainda na ligação, sobre orientações importantes. Tomando nota em um pedaço de papel, escrevi:
Naquele mesmo dia, usei meu horário de almoço para ir até lá. No posto de saúde do bairro, que agora está em novo endereço, descubro que a guia estava no antigo local que funcionava o serviço de saúde da região. Essa informação não tinha sido dita antes.
O contratempo, que me custou cerca de mais um quilômetro para chegar até o local correto, não parou aí. O responsável por entregar aquele pedaço de papel - acredite, apenas uma pessoa poderia me entregar aquela folha impressa -, estava em horário de almoço e retornaria após uma hora.
Mais tempo de espera porque não me deram as informações completas e corretas.
Após esperar mais uma hora, descubro que a consulta havia sido agendada para às 11 horas da manhã do domingo seguinte.
Resultado: foram oito meses de espera, que totalizavam 248 dias, cerca de três quilômetros e meio andados, uma hora de almoço perdida para pegar um pedaço de papel que não dava sequer a chance de me organizar para a consulta - porque o atendimento com o médico já havia sido marcado para um domingo às 11h00 da manhã. Adeus descanso de fim de semana!
O desgaste não é exatamente pelo tempo de espera para liberar a consulta. Infelizmente, essa é a realidade de boa parte do serviço público do país. Paciência!
O problema é que a improdutividade do serviço público não termina nem quando o serviço propriamente dito vai ser, finalmente, entregue.
Como se já não bastasse aqueles longos meses de espera, outros processos pouco produtivos são necessários para realizar as simples tarefas finais.
O que posso considerar é que os serviços públicos se pautam por uma espécie de conjunto de escolhas que eu chamaria de ‘desordemcracia’.
Repare que eu não fiz uso da palavra burocracia porque, a meu ver, existe um sentido equivocado que foi dado, por força maior, a essa palavra. E sim, eu acabei de inventar o conceito ‘desordemcracia’. Mas prometo explicar ao longo do texto.
Para que a gente consiga entender os equívocos, as contradições e, por fim, como diminuir a ‘burocracia’ no Brasil, precisamos fazer uma investigação minuciosa sobre o sentido dessa palavra, levando em consideração o contexto brasileiro.
Será que é verdadeira a ideia difundida sobre diminuir ou até eliminar a burocracia dos serviços públicos?
Nesta série especial, você acompanha alguns ensaios, insights e reflexões sobre gestão pública brasileira. Seus modos de funcionamento, suas práticas e o que poderia ser facilmente transformado para trazer melhores entregas para nós, cidadãos e cidadãs brasileiros.
É preciso desmistificar o sentido dessa palavra, sem deixar de levar em consideração o contexto brasileiro.
O que é burocracia? Como ela sobrevive? E do que ela se alimenta? Sem querer repetir a receita do Profissão Repórter, essas perguntas são as que tentaremos responder ao longo deste artigo.
E, não menos importante, a pergunta de um milhão de dólares: como diminuir a burocracia em nosso país?
Antes de qualquer coisa, minha intenção aqui não é advogar contra a gestão pública, ou contra os serviços públicos brasileiros. Pelo contrário.
Não tenho dúvidas que o funcionamento do Estado é essencial para o desenvolvimento do Brasil. Sobretudo se tratando de um país com profunda desigualdade.
Os serviços públicos, nesse sentido, são essenciais. Mas carecem de uma forte melhoria.
Vale acrescentar que a minha intenção não é também apontar culpados. A ideia aqui é fazer as sinapses do cérebro funcionarem e, assim, pensarmos em soluções.
Para quem não sabe, a palavra burocracia se refere à organização e às etapas de um processo.
Pense o seguinte, existem várias maneiras de se preparar uma massa de bolo. Dos modos mais convencionais aos que são mais sofisticados e contemporâneos.
Independentemente da maneira de como será preparada a massa, as etapas precisam ser cumpridas para que o bolo, ao ser levado ao forno, cresça.
Se a massa do bolo será misturada com o auxílio da batedeira elétrica ou com a força do braço, pouco importa.
Agora, é verdade que, ao escolher a opção mais moderna, o uso de uma batedeira elétrica, portanto, possivelmente você estará economizando no tempo que o bolo levará para ficar pronto. Certo?
O significado sobre burocracia funciona relativamente da mesma maneira. Ou seja, serve para organizar um processo sem que nenhuma etapa seja deixada para trás para garantir a entrega final.
A grosso modo, fazer um bolo também é uma tarefa burocrática. O que podemos fazer para melhorar esse processo e, assim reduzir o tempo gasto na cozinha, é escolher maneiras que facilitem esse trabalho.
Deixar de seguir a receita para se fazer um bolo pode ocasionar em desordem e, portanto, pouco êxito no cumprimento da tarefa.
Nesse exemplo que estamos pensando, seria possível diminuir ou eliminar o conjunto de etapas para se fazer um bolo ? É bem provável que não. Seriam os meios e as opções escolhidas que poderiam facilitar as etapas que, inevitavelmente, precisam ser cumpridas.
O contrário de burocracia seria, então, desordem. E se são duas coisas opostas não poderiam, de forma lógica, ocupar o mesmo espaço.
O problema, a princípio, não é o modo como o processo é organizado, mas os meios pelos quais ele é executado.
Ao voltarmos ao cenário da experiência com o posto de saúde do início do texto, talvez fique mais fácil entendermos o sentido sobre burocracia.
E se, no lugar da ligação, deslocamento de quem solicitou a consulta, papel impresso e assinatura do servidor da UBS na guia de autorização, fosse utilizado um meio digital para cumprir o serviço?
Isto é, não seria necessário que o servidor do posto de saúde ligasse para cada usuário do sistema, nem que houvessem deslocamentos até o local, tampouco impressão de guias.
No pior dos cenários, seria economizado tempo e esforço de quem trabalha, neste caso, para a prefeitura. E seria possível proporcionar agilidade, nesta etapa, para liberar a guia para quem solicitou o serviço.
Certamente, o processo continuaria o mesmo: seria necessário liberar a autorização, assinar e liberá-la para o usuário. A diferença estaria no modo escolhido para se fazer o processo.
E a pergunta de um milhão de dólares permanece: “é possível diminuir a burocracia no Brasil?”
Bom, de uma forma ou de outra sempre haverá algum tipo de regulação por parte do Estado. Inclusive, a administração por meio do Estado é um princípio que podemos encontrar na Constituição Brasileira.
Por exemplo, quem regula o ambiente econômico do Brasil é o Estado. Para que isso seja possível, é necessário que normas e diretrizes sejam criados para manter esse ambiente sob controle.
Quando a gestão pública deixa de facilitar os processos públicos para os cidadãos, a burocracia se transforma em desordem, ou, como eu havia sugerido, num ambiente de ‘desordemcracia’.
Nesse sentido, os procedimentos que seriam originalmente para organizar os trabalhos e a entrega dos serviços, se transformam em vetores que atrapalham os fluxos e o cumprimento da governança pública.
Faz sentido alimentarmos uma certa cultura e relutância contra a burocracia? Talvez não faça. O que deveríamos fazer seria alterar os modos e as escolhas feitas que até então não têm ajudado a "diminuir a burocracia” em nosso país.
Por consequência de uma série de fatores culturais e políticos, direcionamos a nossa contestação à forma de organização do Estado.
“Se não funciona, por que manter?” - Essa e outras perguntas são comuns na boca do povo. Com razão. Os serviços têm falhado em suas entregas.
Mas como já percebemos, o problema não está localizado nas etapas de organização dos serviços públicos, mas no modo como elas são executadas.
É nesse ponto que a burocracia, que deveria operar para definir de forma clara aspectos da estrutura e organização da gestão pública, se transforma em uma monstruosidade que apavora qualquer um.
Sendo assim, a burocracia perde seu valor e significado para dar lugar à desordemcracia.
Em “Elvira: A rainha das trevas”, filme do final da década de 80, nos mostra uma cena engraçada e que se relaciona de perto com o que estamos falando.
A personagem, em um dado momento do filme, tenta fazer um ensopado para seu pretendente. Como não sabe cozinhar, Elvira usa de encantamentos para conseguir concluir seu objetivo.
O resultado é, literalmente, uma monstruosidade: consequência dos meios que Elvira escolhe para cumprir seu objetivo. A escolha que a personagem faz resulta em um prato desastroso (e monstruoso).
Brincadeiras à parte, os procedimentos técnicos adotados pelos serviços públicos brasileiros têm operado de forma similar. A burocracia tem sido transformada numa monstruosidade que dificulta a vida de quem utiliza os serviços e também de quem exerce as funções públicas.
Depois de tantas histórias, explicações e analogias, você deve estar se perguntando: “Então como transformar esse cenário de desordemcracia?”
Bom, para saber você vai precisar ler o próximo capítulo da nossa série especial sobre como diminuir a burocracia no Brasil.
Até mais!